Friday, February 15, 2013

NOVAS E VELHAS CARRETERAS



Por Carlos de Paula
 
O carro híbrido é uma tradição do automobilismo brasileiro. Seja pelas condições econômicas do país, pela distância dos centros de maior desenvolvimento do automobilismo ou mesmo pela inventividade do nosso povo, o automobilista brasileiro, durante grande parte da história do automobilismo tupiniquim, procurou adaptar chassis, componentes e motores de eras e fabricantes diferentes em automóveis de competição.
 
Nos anos 30, diversos pilotos empreendedores criaram carros especiais para correr na corrida da Gávea e em outras (raras) provas, geralmente baseados em Fords, Chevrolets, Studebakers e outros carros americanos, sem muita chance contra os carros puros de competição Alfa-Romeo, Maserati, Bugatti e até mesmo Auto-Union. Estes híbridos em geral pouco se pareciam com os carros de turismo originais nos quais se baseavam. Foi nesse espírito, e calcado na experiência argentina (o Turismo de Carretera com longas corridas de estrada), que surgiu no Brasil a categoria de Mecânica Nacional, mais conhecida como carreteras. Na sua forma mais marcante as carreteras eram baseadas em cupês americanos dos anos 30 e 40, com mecânica Chevrolet, Ford, Cadillac ou Studebaker. Os motores eram V8s americanos potentes, os carros tinham uma aparência mista de  brabos e ao mesmo tempo, inócuos. Os pára-lamas eram retirados da frente, dando uma certa pinta de monoposto à parte frontal do carro, com a traseira obviamente herdada dos cupês de rua, alguns lembrando os velhos táxis de São Paulo. Os carros freqüentemente usavam diferenciais de carros de corrida, transmissão de um fabricante, motor de outro. O ponto mais fraco das carreteras era a suspensão. Nas curvas mais fechadas de Interlagos, as carreteras geralmente eram batidas por pequenos e mais estáveis Gordinis e DKWs, com um quinto da cilindrada. Na sua última fase algumas carreteras eram equipadas com poderosos motores Chevrolet Corvette, alguns dizem com mais de 400 HP, embora nos anos 50 fossem mais comuns as carreteras Ford.
 
Carretera Chervolet Corvette 18 de Camilo Cristófaro
Outra vista da 18  
Close da 18. Foto cortesia de Rogério P.D. Luz
As carreteras fizeram muito sucesso no Brasil entre as décadas de 40 até meados da década de 60.  A mais famosa, sem dúvida, foi a número 18 de Camilo Cristofaro, cor creme, e também a carretera com melhor aerodinâmica e aparência mais moderna, por ser rebaixada. Entre outras corridas, a 18 ganhou as 1000 Milhas de 1966, Camilo em dupla com Eduardo Celidônio, inúmeras provas em Interlagos, e correu até 1971. Digamos, a “18” foi a última das moicanas, e correu contra Porsches, Lolas e Ferraris na Copa Brasil do final de 1970. O próprio Camilo assumiu que a carretera já estava ultrapassada, e no ano seguinte passou a correr com um protótipo Fúria-Ferrari, depois equipado com motor Chrysler. A carretera 18 participou de inúmeras provas de longa distância em Interlagos, mas também participou de corridas curtas, sendo eficaz em ambas. Cabe salientar que a “18” não foi a única carretera de Camilo. Em 1957, Camilo correu em dupla com Djalma Pessolato em uma carretera preparada por Camilo. Na 43a, volta Djalma quase se chocou com um cavalo, freqüentes visitantes de Interlagos na época, acidentou-se, vindo a falecer dos ferimentos. O carro foi completamente destruído. A 18 não foi o único carro de corrida utilizado por ele nesta fase da sua carreira. Também correu na mecânica-continental (veja artigo)com um Maserati 250F com motor Chevrolet, Maseratis esporte, com FNM JK, e com uma Ferrari 250 GTO, na qual ganhou uma importante corrida no Rio de Janeiro, em 1965. Mais tarde, correu de Maverick na D-3 e D1, e com Chevrolet Opala, no qual fez sua última corrida em 1979. Raramente corria fora de São Paulo.
  
Carretera Ford de Breno Fornari, 1956
Outras carreteras a fazer sucesso eram as dos gaúchos, principalmente Norberto Jung, Catarino Andreatta, Vitorio Andreatta, Julio Andreatta, , Raul Fernandes, Aristides Bertuol, Italo Bertão, Orlando Menegaz, Breno Fornari, Jose Asmuz, Diogo Ellwanger, Nactivo Camozzato, Waldir Rebbeschini e Aldo Finardi. Quase todo automobilismo gaúcho dos anos 40 até meados dos anos 60 era disputado com provas de carreteras, inclusive em diversas cidades do interior. Quando o radialista  Wilson Fittipaldi pai concebeu as Mil Milhas com Eloy Gogliano, o conceito não foi abraçado com muito entusiasmo por paulistas, habituados com corridas de carros esporte e monopostos, mais curtas, em formato de GP. O jeito foi convidar os gaúchos, entusiasmados com as provas de longa duração e carros de rua adaptados, e estes, de fato, dominaram a fase inicial das Mil Milhas, ganhando cinco das primeiras seis edições disputadas. No Rio Grande do Sul, na época sem autódromo, disputavam-se muitas corridas em estradas de terra e em circuitos urbanos de rua. Norberto Jung e Catarino Andreatta foram, sem dúvida, dois grandes expoentes dessa época do automobilismo gaúcho.
  Carretera de Nelson Marcilio
Outra vista da 38 de Nelson Marcilio
Chico Landi também correu de carretera, aqui em dupla com Gimenes Lopes  
A 34 de Cateano Damiani. Esta deu trabalho para Camilo
Outros paulistas, como Caetano Damiani e Nelson Marcilio, também fizeram sucesso, assim como Justino de Maio e Vittorio Azalin, os últimos, vencedores das 1000 Milhas de 1965. No Paraná, Altair Barranco, Angelo Cunha e José Cury eram os reis das carreteras, fazendo inclusive sucesso no Rio Grande do Sul. Diversos outros paranaenses, e alguns catarinenses, participaram das primeiras edições das Mil Milhas com suas carreteras. Todos os grandes pilotos dos anos 50, e alguns dos anos 60, correram de carreteras: Chico Landi, Ciro Cayres, Celso Lara Barberis, Eugenio Martins, Fritz D'Orey, Luis Valente, Djalma Pessolato, Jose Gimenez Lopes, Godofredo Vianna, Luis Margarido, Emílio Zambello, Claudio Daniel Rodrigues, Rosalvo Mansur, Antonio Carlos Avallone, Antonio Carlos Aguiar, Afonso Aguiar. Além de outros, não tão famosos, que contribuiram para o show: Aires Bueno Vidal, Zé Peixinho, Berco Acherboim, Bica Votnamis, etc. Outros híbridos na época eram os mecânica-continental. Para mais informações (veja artigo.)
  Justino de Maio/Vittorio Azalin, vencedores das 1000 Milhas de 1965  
Uma carretera do Paraná...
Uma carretera catarinense...
...e uma carretera gaúcha
Corrida de Carreteras no Rio Grande do Sul
Corrida de carreteras em São Paulo: Nelson Marcilio (atras) x Aires Bueno Vidal (na frente)
Carretera de Argemiro Pretto, de Encantado, RS
Carretera Ford do paranaense Altair Barranco em rara aparição fora do Paraná. Subida de Montanha em Petrópolis, 1967. Foto de Tulio Mendonça Mario
Cabe aqui um parentesis. O Brasil não era, obviamente, o único país onde proliferavam híbridos. Na tradição de hot-rodding, surgiram muitos carros híbridos de competição nos Estados Unidos durante a década de 40 e 50. Geralmente, eram desenvolvidos por pilotos que não tinham cacife para comprar Ferraris, OSCAS e outros carros esporte, eram chamados de “Special”, e equipados com motores Buick, Ford, Chevrolet, etc. A Argentina, segundo vimos, foi o berço das carreteras na forma em que passamos a conhecer aqui. Como o nome indica, eram carros adaptados para correr em “carreteras”, ou seja, estradas, as épicas corridas de longa distância que cortaram o continente sul-americano – portanto, além de rápidos tinham de ser forçosamente resistentes. De fato, as carreteras não se expandiram só no Brasil, mas também no Uruguai, Peru e Chile. Híbridos argentinos participaram, em massa, da segunda edição dos 1000 km de Buenos Aires de 1955, obviamente sem nenhuma chance contra oponentes europeus (veja artigo). Mas assim marcaram sua presença no automobilismo de nível internacional. Com o passar do tempo, as carreteras argentinas foram se modernizando, e, de fato, ainda existe a categoria Turismo de Carretera (TC) na Argentina, mas os carros em nada parecem seus precursores, que obtiveram uma aparência mais moderna já durante a década de 60.    
 
Carretera argentina dos anos 40
Nos anos 60 as carreteras argentinas já não se pareciam mais com carreteras...
Entre as carreteras tradicionais, corriam também alguns outros carros de menor porte, como DKWs e até mesmo Gordinis, com os pára-lamas removidos ou cortados, e às vezes até o teto rebaixado, que os excluía da categoria turismo. Com a remoção de lataria ficavam mais leves, e assim, mais rápidos. Por correr na categoria Força Livre (outro nome para as carreteras), os preparadores tinham mais liberdade para modificar os veiculos. Alem disso, principalmente nos últimos anos da categoria, não havia carros V8 suficientes para preencher mesmo um grid pequeno, daí o artifício. A própria equipe Vemag tinha sua carretera, o DKW Mickey Mouse do Volante 13, que, entre outros, um dia teve a distinção de ser pilotado por um certo Juan Manuel Fangio em Interlagos. E a equipe de fábrica da Simca ganhou os 1600 KM de Interlagos de 1963, com Jaime Silva/ Ciro Cayres, com uma carretera Simca, de duas portas e teto rebaixado, batendo os experts Andreatta/Breno Fornari. 
Fangio pilotando a Mickey Mouse da Vemag, em Interlagos
 Além disso, construíam-se carreteras com motores de menor potência, por exemplo, a carretera Fiat usada por Emilio Zambello no início da sua carreira, que fez bastante sucesso. Nas corridas de carreteras também corriam Alfas importadas, Volvos, Fiats, etc. Só que estes carros geralmente não eram híbridos, pois toda sua parte mecânica e carroceria pertenciam a um único fabricante. Digamos que foi necessário ampliar um pouco a definição do termo para garantir a sobrevivência da categoria.
 Mas dentro desse mesmo “espírito híbrido”, Christian Heins e Eugênio Martins colocaram um motor Porsche 1600 num humilde Fusquinha, e quase deu zebra na primeira edição das Mil Milhas, em 1956, contra forte contingente de carreteras do Sul e de São Paulo. Chegaram em 2o. Lá pelos idos de 1966, as carreteras começavam a se tornar anacrônicas, apesar da vitória de Camilo/Celidônio nas 1000 Milhas. Mas outro carro com espírito híbrido fez muito sucesso naquele ano: os Karmann Ghias equipados com motor Porsche, da Equipe Dacon, híbrido que apareceu nas pistas pela primeira vez em 1964 e é muito lembrado até hoje.
 Com o surgimento da Divisão 3 e Divisão 4, basicamente os híbridos ficaram deslocados, não tinham onde correr. Não eram carros turismo, nem tampouco, esporte-protótipos. E assim foram desaparecendo, pouco a pouco, do cenário das competições. Mas não no automobilismo de rua. Amantes de carros antigos brasileiros, principalmente Simcas e Gordinis, adaptaram motorizações híbridas nos seus carros, entre outras coisas, por falta de opções. Com o passar dos anos, tornou-se quase impossível arranjar peças e blocos de Simcas, DKWs e Gordinis. Assim que não é incomum ver Simcas rodando com motores Opala, Gordinis com motores Corcel adaptados e DKWs sem o típico bu-pu-bu do motor 2 tempos. O espírito dos híbridos permaneceu no coração brasileiro.  
  Carretera Fiat de Luis Finotti - Interlagos, 2004 - As carreteras Vivem!!
Não é de se estranhar que tenha surgido uma categoria de competição com esse espírito, em São Paulo. O campeonato de Autos Antigos de 2004 já conta com 30 participantes, desenterrando e trazendo de volta às pistas Berlinettas Interlagos, DKWs, FNMs JK, Fuscas, Pumas, Gordinis, carreteras, etc. O campeonato difere do Campeonato de Clássicos, também corrido em São Paulo, que conta com a participacão de diversas Alfas GTA. Muitos desses carros são carros de turismo, embora antigos, mas diversos são verdadeiras carreteras, embora não haja nenhuma no molde “Chevrolet Corvette V8”. A categoria tem três subcategorias, 1, 2 e 3. Um dos carros mais fortes da categoria é um Willys Interlagos equipado com motor Ford Escort, pilotado pelo veterano Luis Evandro Águia. Um dos DKWs, o de Nivaldo Almeida, se enquadra bem no espírito híbrido: é equipado com um motor AP, em vez do venerado 2 tempos de 1 litro. E a Fiat Topolino de Luis Finotti é uma verdadeira mini-carretera. Vejam as fotos a seguir. Ou seja, as carreteras ainda vivem em São Paulo!
Interlagos com motor Ford Escort, de Luis Aguia - Carretera 2004 style
Quem diria, em pleno 2004 um DKW correndo em Interlagos. Carretera de Flavio Gomes  
VELHAS CARRETERAS GOZANDO APOSENTADORIA...
      

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