Por Carlos
de Paula
O carro
híbrido é uma tradição do automobilismo brasileiro. Seja pelas condições
econômicas do país, pela distância dos centros de maior desenvolvimento do
automobilismo ou mesmo pela inventividade do nosso povo, o automobilista
brasileiro, durante grande parte da história do automobilismo tupiniquim,
procurou adaptar chassis, componentes e motores de eras e fabricantes diferentes
em automóveis de competição.
Nos anos
30, diversos pilotos empreendedores criaram carros especiais para correr na
corrida da Gávea e em outras (raras) provas, geralmente baseados em Fords,
Chevrolets, Studebakers e outros carros americanos, sem muita chance contra os
carros puros de competição Alfa-Romeo, Maserati, Bugatti e até mesmo Auto-Union.
Estes híbridos em geral pouco se pareciam com os carros de turismo originais nos
quais se baseavam. Foi nesse espírito, e calcado na experiência argentina (o
Turismo de Carretera com longas corridas de estrada), que surgiu no Brasil a
categoria de Mecânica Nacional, mais conhecida como carreteras. Na sua forma
mais marcante as carreteras eram baseadas em cupês americanos dos anos 30 e 40,
com mecânica Chevrolet, Ford, Cadillac ou Studebaker. Os motores eram V8s
americanos potentes, os carros tinham uma aparência mista de brabos e ao mesmo tempo, inócuos. Os
pára-lamas eram retirados da frente, dando uma certa pinta de monoposto à parte
frontal do carro, com a traseira obviamente herdada dos cupês de rua, alguns
lembrando os velhos táxis de São Paulo. Os carros freqüentemente usavam
diferenciais de carros de corrida, transmissão de um fabricante, motor de outro.
O ponto mais fraco das carreteras era a suspensão. Nas curvas mais fechadas de
Interlagos, as carreteras geralmente eram batidas por pequenos e mais estáveis
Gordinis e DKWs, com um quinto da cilindrada. Na sua última fase algumas
carreteras eram equipadas com poderosos motores Chevrolet Corvette, alguns dizem
com mais de 400 HP, embora nos anos 50 fossem mais comuns as carreteras Ford.
Carretera Chervolet Corvette 18 de Camilo
Cristófaro
Outra vista da 18
Close da 18. Foto cortesia de
Rogério P.D. Luz
As
carreteras fizeram muito sucesso no Brasil entre as décadas de 40 até meados da
década de 60. A mais famosa, sem dúvida,
foi a número 18 de Camilo Cristofaro, cor creme, e também a carretera com melhor
aerodinâmica e aparência mais moderna, por ser rebaixada. Entre outras corridas,
a 18 ganhou as 1000 Milhas de 1966, Camilo em dupla com Eduardo
Celidônio, inúmeras provas em Interlagos, e correu até 1971. Digamos, a “18” foi
a última das moicanas, e correu contra Porsches, Lolas e Ferraris na Copa Brasil do final de
1970. O próprio Camilo assumiu que a carretera já estava ultrapassada, e no ano
seguinte passou a correr com um protótipo Fúria-Ferrari, depois equipado com
motor Chrysler. A carretera 18 participou de inúmeras provas de longa distância
em Interlagos, mas também participou de corridas curtas, sendo eficaz em ambas.
Cabe salientar que a “18” não foi a única carretera de Camilo. Em 1957, Camilo correu em dupla com
Djalma Pessolato em uma carretera preparada por Camilo. Na 43a, volta
Djalma quase se chocou com um cavalo, freqüentes visitantes de Interlagos na
época, acidentou-se, vindo a falecer dos ferimentos. O carro foi completamente
destruído. A 18 não foi o único carro de corrida utilizado por ele nesta fase da
sua carreira. Também correu na mecânica-continental (veja artigo)com um
Maserati 250F com motor Chevrolet, Maseratis esporte, com FNM JK, e com uma
Ferrari 250 GTO, na qual ganhou uma importante corrida no Rio de Janeiro, em 1965. Mais tarde, correu
de Maverick na D-3 e D1, e com Chevrolet Opala, no qual fez sua última corrida
em 1979. Raramente corria fora de São Paulo.
Carretera Ford de Breno Fornari, 1956
Outras
carreteras a fazer sucesso eram as dos gaúchos, principalmente Norberto Jung,
Catarino Andreatta, Vitorio Andreatta, Julio Andreatta, , Raul Fernandes,
Aristides Bertuol, Italo Bertão, Orlando Menegaz, Breno Fornari, Jose Asmuz,
Diogo Ellwanger, Nactivo Camozzato, Waldir Rebbeschini e Aldo Finardi. Quase
todo automobilismo gaúcho dos anos 40 até meados dos anos 60 era disputado com
provas de carreteras, inclusive em diversas cidades do interior. Quando o radialista
Wilson Fittipaldi pai concebeu as Mil
Milhas com Eloy Gogliano, o conceito não foi abraçado com muito entusiasmo por
paulistas, habituados com corridas de carros esporte e monopostos, mais curtas,
em formato de GP. O jeito foi convidar os gaúchos, entusiasmados com as provas
de longa duração e carros de rua adaptados, e estes, de fato, dominaram a fase
inicial das Mil Milhas, ganhando cinco das primeiras seis edições disputadas. No
Rio Grande do Sul, na época sem autódromo, disputavam-se muitas corridas em
estradas de terra e em circuitos urbanos de rua. Norberto Jung e Catarino
Andreatta foram, sem dúvida, dois grandes expoentes dessa época do automobilismo
gaúcho.
Carretera de Nelson Marcilio
Outra vista da 38 de Nelson Marcilio
Chico
Landi também correu de carretera, aqui em dupla com Gimenes
Lopes
A 34 de Cateano Damiani. Esta deu trabalho para
Camilo
Outros
paulistas, como Caetano Damiani e Nelson Marcilio, também fizeram sucesso, assim
como Justino de Maio e Vittorio Azalin, os últimos, vencedores das 1000 Milhas de 1965. No
Paraná, Altair Barranco, Angelo Cunha e José Cury eram os reis das carreteras,
fazendo inclusive sucesso no Rio Grande do Sul. Diversos outros paranaenses, e
alguns catarinenses, participaram das primeiras edições das Mil Milhas com suas
carreteras. Todos os grandes pilotos dos anos 50, e alguns dos anos 60, correram
de carreteras: Chico Landi, Ciro Cayres, Celso Lara Barberis, Eugenio Martins,
Fritz D'Orey, Luis Valente, Djalma Pessolato, Jose Gimenez Lopes, Godofredo
Vianna, Luis Margarido, Emílio Zambello, Claudio Daniel Rodrigues, Rosalvo
Mansur, Antonio Carlos Avallone, Antonio Carlos Aguiar, Afonso Aguiar. Além de
outros, não tão famosos, que contribuiram para o show: Aires Bueno Vidal, Zé
Peixinho, Berco Acherboim, Bica Votnamis, etc. Outros híbridos na época eram os
mecânica-continental. Para mais informações (veja artigo.)
Justino de Maio/Vittorio Azalin, vencedores das 1000 Milhas de
1965
Uma carretera do Paraná...
Uma carretera catarinense...
...e uma carretera gaúcha
Corrida de Carreteras no Rio Grande do
Sul
Corrida de carreteras em São Paulo: Nelson Marcilio
(atras) x Aires Bueno Vidal (na frente)
Carretera de Argemiro Pretto, de Encantado,
RS
Carretera Ford do paranaense Altair Barranco
em rara aparição fora do Paraná. Subida de Montanha em Petrópolis, 1967. Foto de
Tulio Mendonça Mario
Cabe aqui
um parentesis. O Brasil não era, obviamente, o único país onde proliferavam
híbridos. Na tradição de hot-rodding, surgiram muitos carros híbridos de
competição nos Estados Unidos durante a década de 40 e 50. Geralmente, eram
desenvolvidos por pilotos que não tinham cacife para comprar Ferraris, OSCAS e
outros carros esporte, eram chamados de “Special”, e equipados com motores
Buick, Ford, Chevrolet, etc. A Argentina, segundo vimos, foi o berço das
carreteras na forma em que passamos a conhecer aqui. Como o nome indica, eram
carros adaptados para correr em “carreteras”, ou seja, estradas, as épicas
corridas de longa distância que cortaram o continente sul-americano – portanto,
além de rápidos tinham de ser forçosamente resistentes. De fato, as carreteras
não se expandiram só no Brasil, mas também no Uruguai, Peru e Chile. Híbridos
argentinos participaram, em massa, da segunda edição dos 1000 km de Buenos Aires
de 1955, obviamente sem nenhuma chance contra oponentes europeus (veja artigo). Mas assim
marcaram sua presença no automobilismo de nível internacional. Com o passar do
tempo, as carreteras argentinas foram se modernizando, e, de fato, ainda existe
a categoria Turismo de Carretera (TC) na Argentina, mas os carros em nada
parecem seus precursores, que obtiveram uma aparência mais moderna já durante a
década de 60.
Carretera argentina dos anos 40
Nos anos 60 as carreteras argentinas já não se
pareciam mais com carreteras...
Entre as
carreteras tradicionais, corriam também alguns outros carros de menor porte,
como DKWs e até mesmo Gordinis, com os pára-lamas removidos ou cortados, e às
vezes até o teto rebaixado, que os excluía da categoria turismo. Com a remoção
de lataria ficavam mais leves, e assim, mais rápidos. Por correr na categoria
Força Livre (outro nome para as carreteras), os preparadores tinham mais
liberdade para modificar os veiculos. Alem disso, principalmente nos últimos
anos da categoria, não havia carros V8 suficientes para preencher mesmo um grid
pequeno, daí o artifício. A própria equipe Vemag tinha sua carretera, o DKW
Mickey Mouse do Volante 13, que, entre outros, um dia teve a distinção de ser
pilotado por um certo Juan Manuel Fangio em Interlagos. E a equipe de fábrica da
Simca ganhou os 1600 KM de Interlagos de 1963, com Jaime Silva/ Ciro
Cayres, com uma carretera Simca, de duas portas e teto rebaixado, batendo os
experts Andreatta/Breno Fornari.
Fangio pilotando a Mickey Mouse da Vemag, em
Interlagos
Além
disso, construíam-se carreteras com motores de menor potência, por exemplo, a
carretera Fiat usada por Emilio Zambello no início da sua carreira, que fez
bastante sucesso. Nas corridas de carreteras também corriam Alfas importadas,
Volvos, Fiats, etc. Só que estes carros geralmente não eram híbridos, pois toda
sua parte mecânica e carroceria pertenciam a um único fabricante. Digamos que
foi necessário ampliar um pouco a definição do termo para garantir a
sobrevivência da categoria.
Mas dentro
desse mesmo “espírito híbrido”, Christian Heins e Eugênio Martins colocaram um
motor Porsche 1600 num humilde Fusquinha, e quase deu zebra na primeira edição
das Mil Milhas, em 1956,
contra forte contingente de carreteras do Sul e de São Paulo. Chegaram em
2o. Lá pelos idos de 1966, as carreteras começavam a se tornar
anacrônicas, apesar da vitória de Camilo/Celidônio nas 1000 Milhas. Mas outro
carro com espírito híbrido fez muito sucesso naquele ano: os Karmann Ghias
equipados com motor Porsche, da Equipe Dacon, híbrido que apareceu nas pistas
pela primeira vez em 1964
e é muito lembrado até hoje.
Com o
surgimento da Divisão 3 e Divisão 4, basicamente os híbridos ficaram deslocados,
não tinham onde correr. Não eram carros turismo, nem tampouco,
esporte-protótipos. E assim foram desaparecendo, pouco a pouco, do cenário das
competições. Mas não no automobilismo de rua. Amantes de carros antigos
brasileiros, principalmente Simcas e Gordinis, adaptaram motorizações híbridas
nos seus carros, entre outras coisas, por falta de opções. Com o passar dos
anos, tornou-se quase impossível arranjar peças e blocos de Simcas, DKWs e
Gordinis. Assim que não é incomum ver Simcas rodando com motores Opala, Gordinis
com motores Corcel adaptados e DKWs sem o típico bu-pu-bu do motor 2 tempos. O
espírito dos híbridos permaneceu no coração brasileiro.
Carretera
Fiat de Luis Finotti - Interlagos, 2004 - As carreteras Vivem!!
Não é de se
estranhar que tenha surgido uma categoria de competição com esse espírito, em
São Paulo. O campeonato de Autos Antigos de 2004 já conta com 30 participantes,
desenterrando e trazendo de volta às pistas Berlinettas Interlagos, DKWs, FNMs
JK, Fuscas, Pumas, Gordinis, carreteras, etc. O campeonato difere do Campeonato
de Clássicos, também corrido em São Paulo, que conta com a participacão de
diversas Alfas GTA. Muitos desses carros são carros de turismo, embora antigos,
mas diversos são verdadeiras carreteras, embora não haja nenhuma no molde
“Chevrolet Corvette V8”. A categoria tem três subcategorias, 1, 2 e 3. Um dos
carros mais fortes da categoria é um Willys Interlagos equipado com motor Ford
Escort, pilotado pelo veterano Luis Evandro Águia. Um dos DKWs, o de Nivaldo
Almeida, se enquadra bem no espírito híbrido: é equipado com um motor AP, em vez
do venerado 2 tempos de 1 litro. E a Fiat Topolino de Luis Finotti é uma
verdadeira mini-carretera. Vejam as fotos a seguir. Ou seja, as carreteras ainda
vivem em São Paulo!
Interlagos com motor Ford Escort, de Luis Aguia - Carretera 2004
style
Quem diria, em pleno 2004 um DKW correndo em
Interlagos. Carretera de Flavio Gomes
VELHAS
CARRETERAS GOZANDO APOSENTADORIA...
bons tempos
ReplyDeletebons tempos!
ReplyDeleteBons tempos que via a carreteira 18 do Camilão rasgando o retão de Interlagos, não tinha pra ninguem
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